21 dezembro 2010

A Fera Interior


A Fera Interior

A essência original
ruge intensamente
no meu âmago.

A fera interior
quer se descontrolar
e deixar o instinto guiar

Todas as decisões...
elas ecoam na minha mente
desejando soltar os freios

Mas me olho no espelho
e entendo que foi apenas o tempo
a conseguir domar este humano animal.

( Roder )

Não Sei o que É Conhecer-me


Não Sei o que É Conhecer-me




Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro.

Não acredito que eu exista por detrás de mim.



( Alberto Caeiro )

Morte não é a Esquálida Caveira


Morte não é a Esquálida Caveira




Morte não é a esquálida caveira

Dura, disforme, seca e carcomida:

Ela um destroço é, uma caída

Da abreviada, racional carreira.



De ossos e carne envernizada, inteira,

Por vida tem a nossa própria vida.

Come, bebe, passeia, está vestida

E, até morrer, é nossa companheira.



E sombra que sentimos e não vemos,

Segue-nos sempre aonde quer que vamos,

Só nos deixa nos últimos extremos.



A Morte é sempre a vida que logramos,

Pois morte são os dias que vivemos

E, vida, só o instante que expiramos.



( Francisco Joaquim Bingre )

O Tempo Passa? Não Passa


O Tempo Passa? Não Passa




O tempo passa? Não passa

no abismo do coração.

Lá dentro, perdura a graça

do amor, florindo em canção.



O tempo nos aproxima

cada vez mais, nos reduz

a um só verso e uma rima

de mãos e olhos, na luz.



Não há tempo consumido

nem tempo a economizar.

O tempo é todo vestido

de amor e tempo de amar.



O meu tempo e o teu, amada,

transcendem qualquer medida.

Além do amor, não há nada,

amar é o sumo da vida.



São mitos de calendário

tanto o ontem como o agora,

e o teu aniversário

é um nascer toda a hora.



E nosso amor, que brotou

do tempo, não tem idade,

pois só quem ama

escutou o apelo da eternidade.



( Carlos Drummond de Andrade )

18 dezembro 2010

De Partida


De Partida

Um novo caminho
uma nova vida
uma nova casa
um novo jeito de viver
se põe à minha frente
e novos desafios surgem
e agora sem o apoio
daqueles sempre tão próximos
que na distância apenas
poderão apenas torcer
e esperarque esta nova etapa
seja vencida e que o tempo
acalme todas as expectativas
que agora afligem
meu coração com morada
mas sem lar.

( Roder )

Minha Culpa


Minha Culpa




A Artur Ledesma



Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem

Quem sou?! Um fogo-fátuo, uma miragem...

Sou um reflexo... um canto de paisagem

Ou apenas cenário! Um vaivém...



Como a sorte: hoje aqui, depois além!

Sei lá quem Sou?! Sei lá! Sou a roupagem

Dum doido que partiu numa romagem

E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...



Sou um verme que um dia quis ser astro...

Uma estátua truncada de alabastro...

Uma chaga sangrenta do Senhor...



Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,

Num mundo de vaidades e pecados,

Sou mais um mau, sou mais um pecador...



( Florbela Espanca )

Beijo


Beijo




Beijo na face

Pede-se e dá-se:

Dá?

Que custa um beijo?

Não tenha pejo:

Vá!



Um beijo é culpa,

Que se desculpa:

Dá?

A borboleta

Beija a violeta:

Vá!



Um beijo é graça,

Que a mais não passa:

Dá?

Teme que a tente?

É inocente...

Vá!



Guardo segredo,

Não tenha medo...

Vê?

Dê-me um beijinho,

Dê de mansinho,

Dê!



*



Como ele é doce!

Como ele trouxe,

Flor,

Paz a meu seio!

Saciar-me veio,

Amor!



Saciar-me? louco...

Um é tão pouco,

Flor!

Deixa, concede

Que eu mate a sede,

Amor!



Talvez te leve

O vento em breve,

Flor!

A vida foge,

A vida é hoje,

Amor!



Guardo segredo,

Não tenhas medo

Pois!

Um mais na face,

E a mais não passe!

Dois...



*



Oh! dois? piedade!

Coisas tão boas...

Vês?

Quantas pessoas

Tem a Trindade?

Três!



Três é a conta

Certinho, e justa...

Vês?

E que te custa?

Não sejas tonta!

Três!



Três, sim: não cuides

Que te desgraças:

Vês?

Três são as Graças,

Três as Virtudes;

Três.



As folhas santas

Que o lírio fecham,

Vês?

E não o deixam

Manchar, são... quantas?

Três!



( João de Deus )

Coração Habitado


Coração Habitado




Aqui estão as mãos.

São os mais belos sinais da terra.

Os anjos nascem aqui:

frescos, matinais, quase de orvalho,

de coração alegre e povoado.



Ponho nelas a minha boca,

respiro o sangue, o seu rumor branco,

aqueço-as por dentro, abandonadas

nas minhas, as pequenas mãos do mundo.



Alguns pensam que são as mãos de deus

— eu sei que são as mãos de um homem,

trémulas barcaças onde a água,

a tristeza e as quatro estações

penetram, indiferentemente.



Não lhes toquem: são amor e bondade.

Mais ainda: cheiram a madressilva.

São o primeiro homem, a primeira mulher.

E amanhece.



( Eugénio de Andrade )

15 dezembro 2010

Uma Estrela Me Contou...


Uma Estrela Me Contou



Uma estrela me contou

sobre a chegada de uma nova ordem

a definir uma nova era de mudanças

que trarão um novo pensamento

que se tornará obsoleto

por justamente acreditar

que era realmente algo especial

e se acomodar como tudo

como todos

como o poeira assentando

uma sobre a outra

assim como a estrela,

o universo,

você e eu...



( Roder )

Poética


Poética




De manhã escureço

De dia tardo

De tarde anoiteço

De noite ardo.



A oeste a morte

Contra quem vivo

Do sul cativo

O este é meu norte.



Outros que contem

Passo por passo:

Eu morro ontem



Nasço amanhã

Ando onde há espaço:

– Meu tempo é quando.



( Vinícius de Moraes )

Não és Bom, nem és Mau


Não és Bom, nem és Mau




Não és bom, nem és mau: és triste e humano...

Vives ansiando, em maldições e preces,

Como se a arder no coração tivesses

O tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal padeces;

E rolando num vórtice insano,

Oscilas entre a crença e o desengano,

Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de ações sublimes,

Não ficas com as virtudes satisfeito,

Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E no perpétuo ideal que te devora,

Residem juntamente no teu peito

Um demônio que ruge e um deus que chora.



( Olavo Bilac )

Sèvres Partido


Sèvres Partido




A amazona negra era bella como o sol e triste como o luar, e ninguem acredita mas era pastora de galgas. Figura negra muito esguia, cypreste procurando vaga na margem do caminho.



Nas manhãs de Outomno, frias como os degraus do tanque, era Ella quem largava às galgas a lebre cinzenta, e a que a filásse já sabia com quem dormia a sésta. E as galgas já nem dormiam bem noutra almofada.



Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarellecidas dos plátanos onde os repuxos do tanque cuspiam lagryrnas de vidro, a Amazona negra sonhava o seu Principe encantado e a galga do dia dormia quieta, estendido o focinho no ventre d'Ella.



Uma manhã mais turva as galgas todas voltaram tristes, de focinhos pendidos - e nenhuma para dormir a sésta!



Uma flauta triste vinha de viagem pelo caminho; chorava de seguida imensas canções de choros e tinha acompanhamentos funéreos de guisalhádas surdas.



Callou-se a flauta, um cypreste distante gemia baixinho as dôres da tatuagem que lhe iam abrindo no peito. O pastor lembrava ali o nome do seu Bem. Pendia-lhe da cinta uma lebre cinzenta e a funda torcida.



As galgas como settas deixaram nú o caminho. E as guisalhadas...



( Almada Negreiros )

14 dezembro 2010

Impensável


Impensável

"Não se pode perder
o que nunca se teve"
( The Allman Brothers Band )

É inadmissível ver a felicidade
brotar viçosa depois da tempestade
em outros campos
longe do alcance
daquilo que julgamos
termos em nossas mãos
e , de repente, descobrirmos
há muito tempo
realmente estar tão longe.

( Roder )


Ironia


Ironia




De tanto pensar na morte

Mais de cem vezes morri.

De tanto chamar a sorte

A sorte chamou-me a si.



Deu-me frutos duradoiros

A paz, a fortuna, o amor.

As musas vieram pôr

Na minha fronte os seus loiros...



Hoje o meu sonho procura

Com saudade a poesia

Dos tempos em que eu sofria...



— Que triste coisa a ventura!



( Pedro Homem de Mello )

Um Homem que Está


Um Homem que Está




um homem que está

no meio da entreaberta porta

apenas não fechada ainda

ou já

está

entrando ou saindo dela


lividamente ou putrefacto


um homem está

na entreaberta

entretanto

porta

apenas não fechada ainda

ou já



( Ana Hatherly )

A. L.


A. L.




Não és a flor olímpica e serena

Que eu vejo em sonhos na amplidão distante;

Não tens as formas ideais de Helena,

As formas da beleza triunfante;



Não és também a mística açucena,

A alva e pura Beatriz do Dante;

És a artista gentil, a flor morena

Cheia de aroma casto e penetrante.



Não sei que graça, que esplendor, que arpejo

Eu sinto dentro d'alma quando vejo

Teu corpo aéreo, matinal, franzino...



Faz-me lembrar as vívidas napeias,

E as formas vaporosas das sereias

Rendilhadas num bronze florentino.



( Guerra Junqueiro )

13 dezembro 2010

Feitiço Do Tempo


Feitiço Do Tempo




A rotina se repete

Infinitamente...

O despertador toca

Dentes são escovados

O Banho é tomado

Tudo sempre o mesmo

Tudo no mesmo lugar...

Estou preso sem amarras

Num ciclo sem fim

De trabalho e tomadas de fôlego

Na busca de num momento

De lúcida loucura transgredir

As barreiras invisíveis

E reiniciar uma nova vida

Uma nova história

E descobrir uma nova rotina...

A se repetir novamente

Infinitamente...



( Roder )

Teus Olhos


Teus Olhos




Olhos do meu Amor! Infantes loiros

Que trazem os meus presos, endoidados!

Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:

Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.



Neles ficaram meus palácios moiros,

Meus carros de combate, destroçados,

Os meus diamantes, todos os meus oiros

Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!



Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas..

Enigmáticas campas medievais...

Jardins de Espanha... catedrais eternas...



Berço vinde do céu à minha porta...

Ó meu leite de núpcias irreais!...

Meu sumptuoso túmulo de morta!...



( Florbela Espanca )

Quotidiano (Reflexão)


Quotidiano (Reflexão)




Por exemplo, as coisas que faltam neste lugar:

uma enxada para que as mãos não toquem na terra,

um ninho de pardais no canto da relha,

para que um ruído de asas se possa abrigar,

um pedaço de verde no monte que ainda vejo,

por detrás dos prédios que invadem tudo.



Mas se estas coisas estivessem aqui,

também faria falta um copo de água para ver,

através do vidro, um horizonte desfocado;

e ainda os restos de madeira com que,

no inverno, é costume atiçar o fogo

e a imaginação que ele consome.



Como se tudo estivesse no lugar,

pronto para ser usado na data prevista,

sento-me à janela, e fixo a única coisa

que não se move:

o gato, hipnotizado por um olhar

que só ele pressente.



( Nuno Júdice )

A Felicidade é um Túnel


A Felicidade é um Túnel




o domínio

o erotismo do domínio

do domínio irrisório

mas enorme



submeter

ver tremer

ver o tremor do outro



vencer

o gelo

o desdém

veloz



a felicidade é um túnel



( Ana Hatherly )

10 dezembro 2010

Gota A Gota


Gota A Gota



Sangro,
sou de carne e osso
e o meu desgosto
verte em minhas veias
pelos meu braços
escorre gota a gota
pela ferida aberta
que não fecha nunca
gota por gota a vida
se esvai
e todas as minhas memórias
deixam o meu ser
vazio e oco
sem nada para deixar
para trás
sem nada para deixar
no presente
sem nada a continuar
em frente...


( Roder )

Gazel do Amor Imprevisto


Gazel do Amor Imprevisto




O perfume ninguém compreendia

da escura magnólia de teu ventre.

Ninguém sabia que martirizavas

entre os dentes um colibri de amor.



Mil pequenos cavalos persas dormem

na praça com luar de tua fronte,

enquanto eu enlaçava quatro noites,

inimiga da neve, a tua cinta.



Entre gesso e jasmins, o teu olhar

era um pálido ramo de sementes.

Procurei para dar-te, no meu peito,

as letras de marfim que dizem sempre,



sempre, sempre; jardim em que agonizo,

teu corpo fugitivo para sempre,

teu sangue arterial em minha boca,

tua boca já sem luz para esta morte.



( Federico García Lorca )