31 agosto 2010

Proteção


Proteção

Adoro abraçá-la
sentí-la aninhada
e segura
em meus braços.

Amo sentir o cheiro
do seu cabelo,
o calor do seu corpo
contra o meu.

Quero me sentir protetor
 ser o seu benfeitor,
mesmo que por breves momentos,
que parecem durar a eternidade.

( Roder )

Proémio


Proémio




Em nome daquele que a Si mesmo se criou!

De toda eternidade em ofício criador;

Em nome daquele que toda a fé formou,

Confiança, actividade, amor, vigor;

Em nome daquele que, tantas vezes nomeado,

Ficou sempre em essência imperscrutado:



Até onde o ouvido e o olhar alcançam,

A Ele se assemelha tudo o que conheces,

E ao mais alto e ardente voo do teu 'spírito

Já basta esta parábola, esta imagem;

Sentes-te atraído, arrastado alegremente,

E, onde quer que vás, tudo se enfeita em flor;

Já nada contas, nem calculas já o tempo,

E cada passo teu é já imensidade.



*



Que Deus seria esse então que só de fora impelisse,

E o mundo preso ao dedo em volta conduzisse!

Que Ele, dentro do mundo, faça o mundo mover-se,

Manter Natureza em Si, e em Natureza manter-Se,

De modo que ao que nele viva e teça e exista

A Sua força e o Seu génio assista.



*



Dentro de nós há também um Universo;

Daqui nasceu nos povos o louvável costume

De cada qual chamar Deus, mesmo o seu Deus,

A tudo aquilo que ele de melhor em si conhece,

Deixar à Sua guarda céu e terra.

Ter-Lhe temor, e talvez mesmo — amor.



( Johann Wolfgang von Goethe )

Ausência


Ausência




Fala



Ouvir-te-ei

Ainda que os segredos

As amoras me chamem



Diz-me

Que existirão lágrimas para chorar

Na velhice

Na solidão



Ainda que acordes os olhos dos deuses



Fala



Ouvir-te-ei

A coragem



Alguém de nós que já não está



( Daniel Faria )

Poema do Homem Novo


Poema do Homem Novo




Niels Armstrong pôs os pés na Lua

e a Humanidade saudou nele

o Homem Novo.

No calendário da História sublinhou-se

com espesso traço o memorável feito.



Tudo nele era novo.

Vestia quinze fatos sobrepostos.

Primeiro, sobre a pele, cobrindo-o de alto a baixo,

um colante poroso de rede tricotada

para ventilação e temperatura próprias.

Logo após, outros fatos, e outros e mais outros,

catorze, no total,

de película de nylon

e borracha sintética.

Envolvendo o conjunto, do tronco até aos pés,

na cabeça e nos braços,

confusíssima trama de canais

para circulação dos fluidos necessários,

da água e do oxigénio.



A cobrir tudo, enfim, como um balão ao vento,

um envólucro soprado de tela de alumínio.

Capacete de rosca, de especial fibra de vidro,

auscultadores e microfones,

e, nas mãos penduradas, tentáculos programados,

luvas com luz nos dedos.



Numa cama de rede, pendurada

da parede do módulo,

na majestade augusta do silêncio,

dormia o Homem Novo a caminho da Lua.

Cá de longe, na Terra, num borborinho ansioso,

bocas de espanto e olhos de humidade,

todos se interpelavam e falavam,

do Homem Novo,

do Homem Novo,

do Homem Novo.



Sobre a Lua, Armstrong pôs finalmente os pés.

Caminhava hesitante e cauteloso,

pé aqui,

pé ali,

as pernas afastadas,

os braços insuflados como balões pneumáticos,

o tronco debruçado sobre o solo.



Lá vai ele.

Lá vai o Homem Novo

medindo e calculando cada passo,

puxando pelo corpo como bloco emperrado.



Mais um passo.

Mais outro.

Num sobre-humano esforço

levanta a mão sapuda e qualquer coisa nela.

Com redobrado alento avança mais um passo,

e a Humanidade inteira,

com o coração pequeno e ressequido,

viu, com os olhos que a terra há-de comer,

o Homem Novo espetar, no chão poeirento da Lua, a bandeira da sua Pátria,

exactamente como faria o Homem Velho.



( António Gedeão )

Alice No Ninhal de Leminski


Alice No Ninhal de Leminski



a poeta alice ruiz não existe

foi sempre um charleston triste

de paulo leminski

talvez uma sombra heterônimo

que ele pudesse se ser anônimo



a poeta alice ruiz só insiste

em existir em poema e chiste

porque o leminski

deixou-a em seu lugar pra vice

no sachê de espelhos da doidice



a poeta alice ruiz é um leminski

no outro lado desse ser simples

que ele, o paulo

adorava como se umoutra face

no seu sistêmico entrelace



..................................................................



a poeta alice ruiz finalmente

vai reproduzir-se e ser-se sempre

e leminski etéreo

fazendo tipo de samurai dolente

criará Flor-de-Ruiz num cemitério.


( Silas Corrêa Leite )

Poema Quotidiano


Poema Quotidiano




É tão depressa noite neste bairro

Nenhum outro porém senhor administrador

goza de tão eficiente serviço de sol

Ainda não há muito ele parecia

domiciliado e residente ao fim da rua

O senhor não calcula todo o dia

que festa de luz proporcionou a todos

Nunca vi e já tenho os meus anos

lavar a gente as mãos no sol como hoje

Donas de casa vieram encher de sol

cântaros alguidares e mais vasos domésticos

Nunca em tantos pés

assim humildemente brilhou

Orientou diz-se até os olhos das crianças

para a escola e pôs reflexos novos

nas míseras vidraças lá do fundo



Há quem diga que o sol foi longe demais

Algum dos pobres desta freguesia

apanhou-o na faca misturou-o no pão

Chegaram a tratá-lo por vizinho

Por este andar... Foi uma autêntica loucura

O astro-rei tornado acessível a todos

ele que ninguém habitualmente saudava

Sempre o mesmo indiferente

espectáculo de luz sobre os nossos cuidados

Íamos vínhamos entrávamos não víamos

aquela persistência rubra. Ousaria

alguém deixar um só daqueles raios

atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?



Mas hoje o sol

morreu como qualquer de nós

Ficou tão triste a gente destes sítios

Nunca foi tão depressa noite neste bairro



( Ruy Belo )

30 agosto 2010

Jornada


Jornada

... e com muita luta
enfrentou
as mais difíceis batalhas
e derrotou
as mais incríveis feras.

... e com muita bravura
trilhou
os mais funestos caminhos
e encontrou
os mais assustadores fantasmas.

... e com muita tristeza
ultrapassou
os limites mais distantes da solidão
e amargou
uma vitória sem prêmio.

( Roder )

A Função do Amor é Fabricar Desconhecimento


A Função do Amor é Fabricar Desconhecimento




a função do amor é fabricar desconhecimento



(o conhecido não tem desejo;mas todo o amor é desejar)

embora se viva às avessas,o idêntico sufoque o uno

a verdade se confunda com o facto,os peixes se gabem de pescar



e os homens sejam apanhados pelos vermes(o amor pode não se

importar

se o tempo troteia,a luz declina,os limites vergam

nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela

—o medo tem morte menor;e viverá menos quando a morte acabar)



que afortunados são os amantes(cujos seres se submetem

ao que esteja para ser descoberto)

cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder

mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver



(que riem e choram)que sonham,criam e matam

enquanto o todo se move;e cada parte permanece quieta:





pode não ser sempre assim;e eu digo

que se os teus lábios,que amei,tocarem

os de outro,e os teus ternos fortes dedos aprisionarem

o seu coração,como o meu não há muito tempo;

se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar

naquele silêncio que conheço,ou naquelas

grandiosas contorcidas palavras que,dizendo demasiado,

permanecem desamparadamente diante do espírito ausente;



se assim for,eu digo se assim for—

tu do meu coração,manda-me um recado;

para que possa ir até ele,e tomar as suas mãos,

dizendo,Aceita toda a felicidade de mim.

E então voltarei o rosto,e ouvirei um pássaro

cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.



( E. E. Cummings )

Surdina


Surdina




No ar sossegado um sino canta,

Um sino canta no ar sombrio...

Pálida, Vênus se levanta...

Que frio!



Um sino canta. O campanário

Longe, entre névoas, aparece...

Sino, que cantas solitário,

Que quer dizer a tua prece?



Que frio! embuçam-se as colinas;

Chora, correndo, a água do rio;

E o céu se cobre de neblinas.

Que frio!



Ninguém... A estrada, ampla e silente,

Sem caminhantes, adormece...

Sino, que cantas docemente,

Que quer dizer a tua prece?



Que medo pânico me aperta

O coração triste e vazio!

Que esperas mais, alma deserta?

Que frio!



Já tanto amei! já sofri tanto!

Olhos, por que inda estais molhados?

Por que é que choro, a ouvir-te o canto,

Sino que dobras a finados?



Trevas, caí! que o dia é morto!

Morre também, sonho erradio!

A morte é o último conforto...

Que frio!



Pobres amores, sem destino,

Soltos ao vento, e dizimados!

Inda vos choro... E, como um sino,

Meu coração dobra a finados.



E com que mágoa o sino canta,

No ar sossegado, no ar sombrio!

- Pálida, Vênus se levanta.

Que frio!



( Olavo Bilac )

Os Erros


Os Erros




A confusão a fraude os erros cometidos

A transparência perdida — o grito

Que não conseguiu atravessar o opaco

O limiar e o linear perdidos



Deverá tudo passar a ser passado

Como projecto falhado e abandonado

Como papel que se atira ao cesto

Como abismo fracasso não esperança

Ou poderemos enfrentar e superar

Recomeçar a partir da página em branco

Como escrita de poema obstinado?



( Sophia de Mello Breyner Andresen )

29 agosto 2010

Por Minutos

Por Minutos

Ó musa que mexe
com meus desejos
mais íntimos,
mais secretos,
mais lascivos...

A seus pés
ajoelho-me
em adoração
e espero...

que esta devoção
me leve de volta aos reinos
onde minhas fantasias
se tornam reais,

onde o meu corpo etéreo
se esvai ...
e elevando-se aos céus
torna-se real e existe também,

mesmo que por minutos,
 num outro mundo divino
em que a realidade
vai além de quatro paredes.

( Roder )

VALOR


VALOR



Um gesto

Vale mais que mil palavras



Um beijo

Vale mais que mil beijos



Um olhar

Vale por mil presentes



Uma gota

Vale por mil oceanos



Um minuto

Vale mais que a eternidade



Amor que vale mais que a própria vida.


(  Cecília Cocharo )

Vaga, no Azul Amplo Solta


Vaga, no Azul Amplo Solta



Vaga, no azul amplo solta,

Vai uma nuvem errando.

O meu passado não volta.

Não é o que estou chorando.



O que choro é diferente.

Entra mais na alma da alma.

Mas como, no céu sem gente,

A nuvem flutua calma.



E isto lembra uma tristeza

E a lembrança é que entristece,

Dou à saudade a riqueza

De emoção que a hora tece.



Mas, em verdade, o que chora

Na minha amarga ansiedade

Mais alto que a nuvem mora,

Está para além da saudade.



Não sei o que é nem consinto

À alma que o saiba bem.

Visto da dor com que minto

Dor que a minha alma tem.



( Fernando Pessoa )

Ó Minha Felicidade


Ó Minha Felicidade







Revejo os pombos de São Marcos:

A praça está silenciosa; ali se repousa a manhã.

Indolentemente envio os meus cantos para o seio da suave

frescura,

Como enxames de pombos para o azul

Depois torno a chamá-los

Para prender mais uma rima às suas penas.

— Ó minha felicidade! Ó minha felicidade!



Calmo céu, céu azul-claro, céu de seda,

Planas, protector, sobre o edifício multicor

De que gosto, que digo eu?... Que receio, que invejo...

Como seria feliz bebendo-lhe a alma!

Alguma vez lha devolveria?

Não, não falemos disso, ó maravilha dos olhos!

— Ó minha felicidade! Ó minha felicidade!



Severa torre, que impulso leonino

Te levantou ali, triunfante e sem custo!

Dominas a praça com o som profundo dos teus sinos...

Serias, em francês, o seu «accent aigu»!

Se, como tu, eu ficasse aqui,

Saberia a seda que me prende...

— Ó minha felicidade! Ó minha felicidade!



Afasta-te, música. Deixa primeiro as sombras engrossar

E crescer até à noite escura e tépida.

É ainda muito cedo para ti, os teus arabescos de ouro

Ainda não cintilam no seu esplendor de rosa;

Resta ainda muito dia,

Muito dia para os poetas, fantasmas e solitários.

— Ó minha felicidade! Ó minha felicidade!



( Friedrich Nietzsche )

Aos Vindouros, se os Houver...


Aos Vindouros, se os Houver...




Vós, que trabalhais só duas horas

a ver trabalhar a cibernética,

que não deixais o átomo a desoras

na gandaia, pois tendes uma ética;



que do amor sabeis o ponto e a vírgula

e vos engalfinhais livres de medo,

sem peçários, calendários, Pílula,

jaculatórias fora, tarde ou cedo;



computai, computai a nossa falha

sem perfurar demais vossa memória,

que nós fomos pràqui uma gentalha

a fazer passamanes com a história;



que nós fomos (fatal necessidade!)

quadrúmanos da vossa humanidade.



( Alexandre O'Neill )

A Cor da Tua Alma


A Cor da Tua Alma



Enquanto eu te beijo, o seu rumor

nos dá a árvore, que se agita ao sol de ouro

que o sol lhe dá ao fugir, fugaz tesouro

da árvore que é a árvore de meu amor.



Não é fulgor, não é ardor, não é primor

o que me dá de ti o que te adoro,

com a luz que se afasta; é o ouro, o ouro,

é o ouro feito sombra: a tua cor.



A cor de tua alma; pois teus olhos

vão-se tornando nela, e à medida

que o sol troca por seus rubros seus ouros,

e tu te fazes pálida e fundida,

sai o ouro feito tu de teus dois olhos

que me são paz, fé, sol: a minha vida!



( Juan Ramón Jiménez )

O Poema que Morreu


O Poema que Morreu


Um assassinato.

Tudo indicava assim.

E o coitado do poema, estirado,

era coceira na curiosidade pública.



Chegou o delegado

- e cismado -

foi tecendo em pensamento

as inconstantes formas da dúvida.



Uma interrogação passeava ali.

Crescia e engordava

- proporcional -

a cada pessoa que parava

na pele da já recém formada

multidão.



Não demorou muito e apareceu o legista.

Ele era meio esquisito,

tinha tique nervoso

e coceira na vista.

Examinou o já lido poema

e constatou o consumado fato:

- Morrera de amor, não de infarto.

Suicídio? Assassinato?

Quem faria o fatídico ato?

- Quem ??? perguntava o delegado.



E com um ar sherloquiano

pegou o morto nas mãos.



Sob os olhos atentos da multidão

exclamou a primeira descoberta:

- Não era amador o assassino, era poeta !

“Poeta ?” Indagou a multidão incrédula.

- Poeta! Confirmou alisando o imeeeenso bigode.

Chegaram então os repórteres,

a lavadeira,

o bêbado ainda de porre,

a dona Julieta, o doutor Onofre,

e todos, do sul ao norte,

mastigavam a mesma pergunta:

“Um poeta, mas como é que pode ?”

- Simples! - Explicou o delegado...

A tristeza, num homem apaixonado,

dói além do sustentável.

No peito, abre um buraco.

Tanto insiste

que não resta escapatória,

com o dedo em riste,

atrás da porta,

persiste o crime.

A arma utilizada

não foi revólver,

não foi faca.

Foi um sentimento amargurado

delineado no papel

por uma caneta esferográfica.

Já a paixão - continua -,

foi a vítima,

de vez esquecida,

varrida,

morta.



Não é caso de polícia.

por aí morre um amor por dia,

é uma palavra prolixa, doída.

Dor nenhuma deve virar notícia,

fez bem o poeta em matar essa paixão.



E terminou largando o poema no chão.

Seguiu em frente, sumiu na multidão

que por sua vez se desfez

com a mesma rapidez

que se formou.



Mas do vazio que ficou - dilacerado,

permaneceu solitário

um adolescente

com os olhos molhados

e uma caneta na mão.

Em passos lentos, assimilados,

aproximou-se do poema

no chão largado

e guardou no bolso

a história do amor

que minutos antes havia escrito,

e por qualquer descuido

perdido...


( Ricardo França )