29 novembro 2010

Esconderijo


Esconderijo

Me escondi atrás
dos meus medos
e como um elefante
numa loja de cristais
só criei confusão
e destruição!

E no final,
nem sequer consegui
me esconder...

( Roder )

Canção de Batalha


Canção de Batalha




Que durmam, muito embora, os pálidos amantes,

Que andaram contemplando a Lua branca e fria...

Levantai-vos, heróis, e despertai, gigantes!

Já canta pelo azul sereno a cotovia

E já rasga o arado as terras fumegantes...



Entra-nos pelo peito em borbotões joviais

Este sangue de luz que a madrugada entorna!

Poetas, que somos nós? Ferreiros d'arsenais;

E bater, é bater com alma na bigorna

As estrofes de bronze, as lanças e os punhais.



Acendei a fornalha enorme — a Inspiração.

Dai-lhe lenha — A Verdade, a Justiça, o Direito —

E harmonia e pureza, e febre, e indignação;

E p'ra que a labareda irrompa, abri o peito

E atirai ao braseiro, ardendo, o coração!



Há-de-nos devorar, talvez, o incêndio; embora!

O poeta é como o Sol: o fogo que ele encerra

É quem espalha a luz nessa amplidão sonora...

Queimemo-nos a nós, iluminando a Terra!

Somos lava, e a lava é quem produz a aurora!



( Guerra Junqueiro )

Juventude


Juventude




Lembras-te, Carlos, quando, ao fim do dia,

Felizes, ambos, íamos nadar

E em nossa boca a espuma persistia

Em dar ao Sol o nome do Luar?



Tudo era fácil, melodioso e longo.

Aqui e além, um súbito ditongo

Ecoava em nós certa canção pagã.



Contudo o azul do mar não tinha fundo

E o mundo continuava a ser o mundo

Banhado pela aragem da manhã!...



( Pedro Homem de Mello )

Amor


Amor




Por teu ventre começa a minha vida,

Por teus olhos a estrela que me guia.

Amor, que Deus te salve! — Ave-Maria

Cheia de Graça ó Bem-Aparecida.



Por meu e por teu verbo de harmonia

Se fará eterna origem comovida

De outros frutos de Amor! — Ave-Maria,

Senhora da minh'alma apetecida.



E meu sangue amoroso e produtivo

Se fará carne e espírito fecundo

À tua imagem noutro corpo vivo.



E assim ambos, Amor, iremos ser

Seio da vida originando o mundo

Por teu ventre bendito de Mulher.



( Afonso Duarte )

28 novembro 2010

Brevidade



Brevidade

É na sua brevidade
que a vida exala
toda a sua beleza
onde cada suspiro
é uma vitória
e um presente
e por não sabermos
quão de repente
a eternidade
nos será ofertada.

( Roder )

A Tua Voz de Primavera


A Tua Voz de Primavera




Manto de seda azul, o céu reflete

Quanta alegria na minha alma vai!

Tenho os meus lábios úmidos: tomai

A flor e o mel que a vida nos promete!



Sinfonia de luz meu corpo não repete

O ritmo e a cor dum mesmo desejo... olhai!

Iguala o sol que sempre às ondas cai,

Sem que a visão dos poentes se complete!



Meus pequeninos seios cor-de-rosa,

Se os roça ou prende a tua mão nervosa,

Têm a firmeza elástica dos gamos...



Para os teus beijos, sensual, flori!

E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,

Só me exalto e sou linda para ti!



( Florbela Espanca )

Sua Beleza


Sua Beleza




Sua beleza é total

Tem a nítida esquadria de um Mantegna

Porém como um Picasso de repente

Desloca o visual



Seu torso lembra o respirar da vela

Seu corpo é solar e frontal

Sua beleza à força de ser bela

Promete mais do que prazer

Promete um mundo mais inteiro e mais real

Como pátria do ser



( Sophia de Mello Breyner Andresen )

A Jovem Cativa


A Jovem Cativa




(André Chenier)



— “Respeita a foice a espiga que desponta;

Sem receio ao lagar o tenro pâmpano

Bebe no estio as lágrimas da aurora;

Jovem e bela também sou; turvada

A hora presente de infortúnio e tédio

Seja embora: morrer não quero ainda!



De olhos secos o estóico abrace a morte;

Eu choro e espero; ao vendaval que ruge

Curvo e levanto a tímida cabeça.

Se há dias maus, também os há felizes!

Que mel não deixa um travo de desgosto?

Que mar não incha a um temporal desfeito?



Tu, fecunda ilusão, vives comigo.

Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,

Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:

Escapa da prisão do algoz humano,

Nas campinas do céu, mais venturosa,

Mais viva canta e rompe a filomela.



Deve acaso morrer ? Tranqüila durmo,

Tranqüila velo; e a fera do remorso

Não me perturba na vigília ou sono;

Terno afago me ri nos olhos todos

Quando apareço, e as frontes abatidas

Quase reanima um desusado júbilo.



Desta bela jornada é longe o termo.

Mal começo; e dos olmos do caminho

Passei apenas os primeiros olmos.

No festim em começo da existência

Um só instante os lábios meus tocaram

A taça em minhas mãos ainda cheia.



Na primavera estou, quero a colheita

Ver ainda, e bem como o rei dos astros,

De sazão em sazão findar meu ano.

Viçosa, sobre a haste, honra das flores,

Hei visto apenas da manhã serena

Romper a luz, — quero acabar meu dia.



Morte, tu podes esperar; afasta-te!

Vai consolar os que a vergonha, o medo,

O desespero pálido devora.

Pales inda me guarda um verde abrigo,

Ósculos o amor, as musas harmonias;

Afasta-te, morrer não quero ainda!” –



Assim, triste e cativa, a minha lira

Despertou escutando a voz magoada

De uma jovem cativa; e sacudindo

O peso de meus dias langorosos,

Acomodei à branda lei do verso

Os acentos da linda e ingênua boca.



Sócios meus de meu cárcere, estes cantos

Farão a quem os ler buscar solícito

Quem a cativa foi; ria-lhe a graça

Na ingênua fronte, nas palavras meigas;

De um termo à vida, há de tremer, como ela,

Quem aos seus dias for casar seus dias.



( Machado de Assis )

Balada do Poema que não Há


Balada do Poema que não Há




Quero escrever um poema

Um poema não sei de quê

Que venha todo vermelho

Que venha todo de negro

Às de copas às de espadas

Quero escrever um poema

Como de sortes cruzadas



Quero escrever um poema

Como quem escreve o momento

Cheiro de terra molhada

Abril com chuva por dentro

E este ramo de alfazema

Por sobre a tua almofada

Quero escrever um poema

Que seja de tudo ou nada



Um poema não sei de quê

Que traga a notícia louca

Da história que ninguém crê

Ou esta afta na boca

Esta noite sem sentido

Coisa pouca coisa pouca

Tão aquém do pressentido

Que me dói não sei porquê



Quero um poema ao contrário

Deste estado que padeço

Meu cavalo solitário

A cavalgar no avesso

De um verso que não conheço



Que venha de capa e espada

Ou de chicote na mão

Sobre esta noite acordada

Quero um poema noitada

Um poema até mais não



Quero um poema que diga

Que nada há que dizer

Senão que a noite castiga

Quem procura uma cantiga

Que não é de adormecer



Poema de amor e morte

No reino da Dinamarca

Ser ou não ser eis a sorte

O resto é silêncio e dor

Poema que traga a marca

Do Castelo de Elsenor



Quero o poema que me dê

Aquela música antiga

Da Provença e da Toscânia

Vinho velho de Chianti

Com Ezra Pound em Rapallo

E versos de Cavalcanti

Ou Guilherme de Aquitânia

Dormindo sobre um cavalo



E com ele então dizer

O meu poema está feito

Não sei de quê nem sobre quê



Dormindo sobre um cavalo



Quero o poema perfeito

Que ninguém há-de escrever

Que ele traga a estrela negra

Do canto e da solidão

Ou aquela toutinegra

De Camões quando escrevia

Sôbolos rios que vão



Que venha como um destino

Às de copas às de espadas

Que venha para viver

Que venha para morrer

Se tiver que ser será

E não há cartas marcadas

Só assim poderá ser

O poema que não há



( Manuel Alegre )

26 novembro 2010

Apenas Poeira...


Apenas Poeira...

Evoluímos até aqui
para depois de construirmos
grandes civilizações
e criarmos deuses
de poderes infinitos
continuarmos morrendo
como reles mortais.

( Roder )

A Armadura


A Armadura




Desenganos, traições, combates, sofrimentos,

Numa vida já longa acumulados, vão

— Como sobre um paul contínuos sedimentos,

Pouco a pouco envolvendo em cinza o coração.



E a cinza com o tempo atinge uma espessura

Que nem os mais cruéis desesperos abalam;

É como tenebrosa, impávida armadura

Ou couraça de bronze em que os golpes resvalam.



Impermeável da Inveja à peçonhenta bava,

Nela a Calúnia embota os seus dentes ervados;

Não há braço que possa amolgá-la, nem clava

Que nesse duro arnês se não faça em bocados.



E no entanto, através dessas rijas camadas,

Ou rompendo por entre as juntas da armadura,

Escorrem muita vez gotas ensanguentadas

Que o coração verteu dalguma chaga obscura...



( António Feijó )

Noite de Sonhos Voada


Noite de Sonhos Voada




Noite de sonhos voada

cingida por músculos de aço,

profunda distância rouca

da palavra estrangulada

pela boca armodaçada

noutra boca,

ondas do ondear revolto

das ondas do corpo dela

tão dominado e tão solto

tão vencedor, tão vencido

e tão rebelde ao breve espaço

consentido

nesta angústia renovada

de encerrar

fechar

esmagar

o reluzir de uma estrela

num abraço

e a ternura deslumbrada

a doce, funda alegria

noite de sonhos voada

que pelos seus olhos sorria

ao romper de madrugada:

— Ó meu amor, já é dia!...



( Manuel da Fonseca )

Poeminha Tentando Justificar Minha Incultura


Poeminha Tentando Justificar Minha Incultura




Ler na cama

É uma difícil operação

Me viro e reviro

E não encontro posição

Mas se, afinal,

Consigo um cómodo abandono,

Pego no sono.



( Millôr Fernandes )

24 novembro 2010

Rapunzel


Rapunzel

Ó minha linda Rapunzel
sem tranças
que me envolve
numa eterna dança
a me levar
como criança...

A querer escalar
as muralhas da torre
das suas inseguranças
e me tornar o príncipe
real e nada encantado
a salvá-la de seus dragões.

( Roder )

Elegia dos Amantes Lúcidos


Elegia dos Amantes Lúcidos




Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)

Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.

Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha

O contorno lunar da noite que te finge!



Se ao menos eu gelasse uma corda do vento

para encontrar a forma exacta dum violino

Que fosse a sensibilidade deste pensamento

Com que a minha sombra vai pensando o meu destino



E não houvesse o sono dum telhado

Entre ter de haver eu e haver o tecto;

E a eternidade não estivesse ao lado

A colocar-nos nas costas as asas dum insecto



Meu amor, meu amor, teu gesto nasce

Para partir de ti e ser ao longe

A cor duma cidade que nos pasce

Como a ausência de deus pastando um monge



Ah, se uma súbita mão na hora a pique

Tangendo harpas geladas por segredos

Desprendesse uma aragem de repiques

Destes sinos parados pelo medo!



Mas só porque vieste fez-se tarde,

Ou é a vida que nasce já tardia

Como uma estrela que se acende e arde

Porque não cabe na rapidez do dia?



Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga:

Uma inflação de deuses que não pode parar

Como um pássaro cego à nora da intriga

Que é a morte no centro connosco a circular.



Será o mesmo tempo que nos cabe?

Talvez sejas a raça prematura

Duma gota de orvalho que se há-de

Negar à minha sede desértica e futura.



Como o brilho dum sol partido ao meio

Damos luz pela nostalgia da metade.

Partes para ser gaivota no meu seio.

Mas não trazes no bico uma cidade.



Aqui pousou um pássaro de lume

Que deixou um voo subterrâneo

Na repetida vibração do gume

Que cada hora traz à lâmina do crânio.



Teus dedos num relógio como a picada duma abelha

A fabricar o mel da estação perdida!

Que quanto a primavera um rouxinol na telha

É toda a melodia que traz na unha a vida.



O navio tem dois extremos ermos:

Os cabelos para Vénus e os pés para Marte.

Mas a viagem é o mar com a terra a ver-nos.

E com lenços à vista ninguém parte.



Ah, se ao menos eu pudesse agora erguer-me

Como uma pedra pelas minhas mãos futuras

E ficasse para sempre a aquecer-me

Ao sol que cega efémeras criaturas!



Se soltasses as aves da rotina

E de um jorro de deuses abrisses a comporta

E reclinada em tua espádua genuína

Eu entrasse num céu sem ter que achar a porta!



Se tu viesses cavaleiro branco

Orvalhado pela manhã do meu instinto.

E ficasses a chamar-me como um canto

No porvir do nosso último recinto!



Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa

Nas praias donde Maio se retira,

Enrolados nos panos duma paisagem silenciosa

Que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira!



Ah, as sementes que te exigem em declive

Entre abismos onde nunca te despenhas

E esfumados voos em que te embebes e revives

O que de ti já pousou no cume das montanhas!



Inútil decifrarmos este oráculo de ave absorta

Na incontinência do voo que a abrasa.

Se houver um palácio sem porta, talvez seja a porta.

Se houver uma casa sem tecto, talvez seja a casa.



( Natália Correia )

A Angústia Insuportável de Gente


A Angústia Insuportável de Gente




Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,

A banalidade devorante das caras de toda a gente!

Ah, a angústia insuportável de gente!

O cansaço inconvertível de ver e ouvir!



(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu.)



Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,

Estômago da alma alvorotado de eu ser...



( Álvaro de Campos )

Elogio da Distância


Elogio da Distância




Na fonte dos teus olhos

vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.

Na fonte dos teus olhos

o mar cumpre a sua promessa.



Aqui, coração

que andou entre os homens, arranco

do corpo as vestes e o brilho de uma jura:



Mais negro no negro, estou mais nu.

Só quando sou falso sou fiel.

Sou tu quando sou eu.



Na fonte dos teus olhos

ando à deriva sonhando o rapto.



Um fio apanhou um fio:

separamo-nos enlaçados.



Na fonte dos teus olhos

um enforcado estrangula o baraço.



( Paul Celan )

23 novembro 2010

Os Monstros


Os Monstros

Vou enfrentando os monstros
de um passado não tão distante
com afinco e emoção
e de instante em instante.


Me pego de olhos nos olhos
encarando de nariz no nariz
os meus medos mais íntimos
que só assombram a mim.

E por isso mesmo
são os mais difíceis de vencer.
Já que criador e criatura
em simbiose,sempre serão um!

( Roder )