24 novembro 2010

Elegia dos Amantes Lúcidos


Elegia dos Amantes Lúcidos




Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)

Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.

Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha

O contorno lunar da noite que te finge!



Se ao menos eu gelasse uma corda do vento

para encontrar a forma exacta dum violino

Que fosse a sensibilidade deste pensamento

Com que a minha sombra vai pensando o meu destino



E não houvesse o sono dum telhado

Entre ter de haver eu e haver o tecto;

E a eternidade não estivesse ao lado

A colocar-nos nas costas as asas dum insecto



Meu amor, meu amor, teu gesto nasce

Para partir de ti e ser ao longe

A cor duma cidade que nos pasce

Como a ausência de deus pastando um monge



Ah, se uma súbita mão na hora a pique

Tangendo harpas geladas por segredos

Desprendesse uma aragem de repiques

Destes sinos parados pelo medo!



Mas só porque vieste fez-se tarde,

Ou é a vida que nasce já tardia

Como uma estrela que se acende e arde

Porque não cabe na rapidez do dia?



Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga:

Uma inflação de deuses que não pode parar

Como um pássaro cego à nora da intriga

Que é a morte no centro connosco a circular.



Será o mesmo tempo que nos cabe?

Talvez sejas a raça prematura

Duma gota de orvalho que se há-de

Negar à minha sede desértica e futura.



Como o brilho dum sol partido ao meio

Damos luz pela nostalgia da metade.

Partes para ser gaivota no meu seio.

Mas não trazes no bico uma cidade.



Aqui pousou um pássaro de lume

Que deixou um voo subterrâneo

Na repetida vibração do gume

Que cada hora traz à lâmina do crânio.



Teus dedos num relógio como a picada duma abelha

A fabricar o mel da estação perdida!

Que quanto a primavera um rouxinol na telha

É toda a melodia que traz na unha a vida.



O navio tem dois extremos ermos:

Os cabelos para Vénus e os pés para Marte.

Mas a viagem é o mar com a terra a ver-nos.

E com lenços à vista ninguém parte.



Ah, se ao menos eu pudesse agora erguer-me

Como uma pedra pelas minhas mãos futuras

E ficasse para sempre a aquecer-me

Ao sol que cega efémeras criaturas!



Se soltasses as aves da rotina

E de um jorro de deuses abrisses a comporta

E reclinada em tua espádua genuína

Eu entrasse num céu sem ter que achar a porta!



Se tu viesses cavaleiro branco

Orvalhado pela manhã do meu instinto.

E ficasses a chamar-me como um canto

No porvir do nosso último recinto!



Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa

Nas praias donde Maio se retira,

Enrolados nos panos duma paisagem silenciosa

Que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira!



Ah, as sementes que te exigem em declive

Entre abismos onde nunca te despenhas

E esfumados voos em que te embebes e revives

O que de ti já pousou no cume das montanhas!



Inútil decifrarmos este oráculo de ave absorta

Na incontinência do voo que a abrasa.

Se houver um palácio sem porta, talvez seja a porta.

Se houver uma casa sem tecto, talvez seja a casa.



( Natália Correia )

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