09 novembro 2010

Do Tempo ao Coração


Do Tempo ao Coração




E volto a murmurar Do cântico de amor

gerado na Suméria às novas europutas

Do muito que me dás ao muito que não dou

mas que sempre conservo entre as coisas mais puras



De uma genebra a mais num bar de Amsterdão

a não perder o pé numa praia da Grécia

De tantas tantas mãos que nos passam pelas mãos

a tão poucas que são as que nunca se esquecem



De ter visto o começo e o fim da Via Ápia

De ter atravessado o muro de Berlim

De outros muros que não aparecem no mapa

De outros muros que só aparecem aqui



ao barro deste céu que te modela os ombros

ao sopro deste céu que te solta o cabelo

ao riso deste céu que vem ao nosso encontro

quando sabe que nós não precisamos dele



Da pertinaz presença E da longevidade

do corvo do chacal do louco do eunuco

ao rouxinol que morre em plena madrugada

à rosa que adormece em caules de um minuto



Do que foi noutro tempo a saúde no campo

à lepra que nos rói a paisagem bucólica

Do tempo ao coração minado pelo cancro

Dos rins ao infinito incubado na cólera



Do tempo ao coração mas com pausa na pele

como «Roma by night» entre dois aviões

como passar o Verão numa vogal aberta

como dizer que não que já não somos dois



Dos rins ao infinito A este que não outro

Ao que rola dos rins Ao que vai rebentar-te

na câmara blindada e nocturna do útero

E nos transfere o fim para um pouco mais tarde



Da curva de entretanto à entrada do poço

De soletrar em mim a ler nas tuas mãos

como é rápido e lento e recto e sinuoso

o percurso que vai do tempo ao coração.



( David Mourão-Ferreira )

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