30 setembro 2010

Além Do Nosso Alcance


Além Do Nosso Alcance



A verdade

de cada um

varia de acordo

com os seus interesses

e as suas necessidades,

onde o azul

vira verde

e o admissível

vira inadmissível.

Desde que o possível

seja convertido

em dogma impossível

e tão inalcançável

como um céu

bem acima de nossas cabeças

que esquecemos dos nossos pés

tocando o chão.



( Roder )

Segredo


Segredo




Não contes do meu

vestido

que tiro pela cabeça



nem que corro os

cortinados

para uma sombra mais espessa



Deixa que feche o

anel

em redor do teu pescoço

com as minhas longas

pernas

e a sombra do meu poço



Não contes do meu

novelo

nem da roca de fiar



nem o que faço

com eles

a fim de te ouvir gritar



( Maria Teresa Horta )

Soneto


Soneto




Não pode Amor por mais que as falas mude

exprimir quanto pesa ou quanto mede.

Se acaso a comoção falar concede

é tão mesquinho o tom que o desilude.



Busca no rosto a cor que mais o ajude,

magoado parecer aos olhos pede,

pois quando a fala a tudo o mais excede

não pode ser Amor com tal virtude.



Também eu das palavras me arreceio,

também sofro do mal sem saber onde

busque a expressão maior do meu anseio.



E acaso perde, o Amor que a fala esconde,

em verdade, em beleza, em doce enleio?

Olha bem os meus olhos, e responde.



( António Gedeão )

Os Erros


Os Erros




A confusão a fraude os erros cometidos

A transparência perdida — o grito

Que não conseguiu atravessar o opaco

O limiar e o linear perdidos



Deverá tudo passar a ser passado

Como projecto falhado e abandonado

Como papel que se atira ao cesto

Como abismo fracasso não esperança

Ou poderemos enfrentar e superar

Recomeçar a partir da página em branco

Como escrita de poema obstinado?



( Sophia de Mello Breyner Andresen )

29 setembro 2010

Ao Grande Desconhecido


Ao Grande Desconhecido

Então rumamos em direção
ao grande desconhecido
que tanto atrai e repele
pelos mesmos motivos.

Queremos o novo
mas também a segurança
e um parece impossível
junto ao outro.

Aqueles que primeiro desbravaram
os seus incertos caminhos
ou viraram heróis
com suas histórias fantásticas.

Ou se tornaram mitos
pela sua eterna espera
entre seus entes queridos
sempre a relembrar a sua busca.

Mas o mais difícil é escolher,
e tudo na vida é um eterno escolher...
Entre a apatia da segurança
e a sorte de não voltar nunca mais!

( Roder )

Post Coitum Animal Triste


Post Coitum Animal Triste




Em ti o poema, o amplo tecido da água ou a forma

do segredo. Outrora conheceste a margem abandonada

do desejo, a sua extensão e principias a entregar

os vasos alongados para receberes as mãos das chuvas.



Apagaram-se junto dos teus olhos as praias, as árvores

que se ergueram um dia sobre as estradas romanas,

o vestígio dos últimos peregrinos, aves nuas

que já desceram, cansadas, pelo interior do teu peito.



Uma voz, no silêncio calmo das águas, esquece

a mentira das primeiras colheitas, onde os nossos gestos

perderam os sorrisos ou o orvalho que os cerca.



Serenamente, começaram a fechar-se os sonhos de Deus

no interior de novos frutos e, abandonado, fico

junto do teu corpo, onde principia a sombra deste poema.



( Fernando Guimarães )

Poeminha de Insatisfação Absoluta


Poeminha de Insatisfação Absoluta




O que me dói

É que quando está tudo acabado

Pronto pronto

Não há nada acabado

Nem pronto pronto

Pintou-me a casa toda

Está tudo limpado

O armário fechado

A roupa arrumada

Tudo belo, perfeito.

E no mesmo instante

Em que aperfeiçoamos a perfeição

Uma lasca diminuta, ténue, microscópica,

Não sei onde,

Está começando

Na pintura da casa

E as traças, não sei onde,

Estão batendo asas

E a poeira, em geral, está caindo invisível,

E a ferrugem está comendo não sei quê

E não há jeito de parar.



( Millôr Fernandes )

Os Cinco Sentidos


Os Cinco Sentidos




São belas - bem o sei, essas estrelas,

Mil cores - divinais têm essas flores;

Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:

Em toda a natureza

Não vejo outra beleza

Senão a ti - a ti!



Divina - ai! sim, será a voz que afina

Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.

será; mas eu do rouxinol que trina

Não oiço a melodia,

Nem sinto outra harmonia

Senão a ti - a ti!



Respira - n'aura que entre as flores gira,

Celeste - incenso de perfume agreste,

Sei... não sinto: minha alma não aspira,

Não percebe, não toma

Senão o doce aroma

Que vem de ti - de ti!



Formosos - são os pomos saborosos,

É um mimo - de néctar o racimo:

E eu tenho fome e sede... sequiosos,

Famintos meus desejos

Estão... mas é de beijos,

É só de ti - de ti!



Macia - deve a relva luzidia

Do leito - ser por certo em que me deito.

Mas quem, ao pé de ti, quem poderia

Sentir outras carícias,

Tocar noutras delícias

Senão em ti! - em ti!



A ti! ai, a ti só os meus sentidos

Todos num confundidos,

Sentem, ouvem, respiram;

Em ti, por ti deliram.

Em ti a minha sorte,

A minha vida em ti;

E quando venha a morte,

Será morrer por ti.



( Almeida Garrett )

28 setembro 2010

O Medo


O Medo

O mesmo medo
que o impulsiona
a continuar
infinitamente
contra o desconhecido

É o mesmo medo
que o paralisa
a estacar
instintivamente
frente ao impensável

E o maior medo
de tudo
é que a escolha
entre parar ou continuar
cabe apenas a você!

( Roder )

A Possibilidade de Uma Ilha


A Possibilidade de Uma Ilha




Minha vida, minha vida, minha muito ancestral

Mal cumprido o meu primeiro voto

Repudiado o meu primeiro amor,

Precisei do teu retorno.



Precisei de conhecer

O que a vida tem de melhor,

Quando dois corpos brincam com a felicidade

E se unem e renascem sem fim.



Dominado por uma dependência total,

Sei o estremecimento do ser

A hesitação em desaparecer,

O sol que incide de través



E o amor, onde tudo é fácil,

Onde tudo é dado no momento;

Existe no meio do tempo

A possibilidade de uma ilha.



( Michel Houellebecq )

Evolução


Evolução




Arde o corpo do sol, brotam feixes de luz:

O que é a luz?

Sol que morreu.



Dardeja a luz, dardeja e pulveriza a fraga:

Vai nesse pó, que há-de ser terra,

A luz extinta.



Gerou a terra a seara verde:

Hastes e folhas da seara verde

Comeram terra.



A seara é grada, o trigo é loiro:

Deu trigo loiro,

Morrendo ela.



O trigo é pão, é carne e é sangue:

Sangue vermelho, carne vermelha,

Trigo defunto.



Em carne e em sangue, eis o desejo:

Vive o desejo,

De carne morta.



Arde o desejo, eis o pecado:

Que são pecados?

Desejos mortos.



Queima o pecado o pecador:

Nasceu a dor; findou na dor

Pecado e morte.



A alma branca, iluminada,

Transfigurada pela dor,

Essa não vai à sepultura

Porque é já Deus na criatura,

Porque é o Espírito, é o Amor.



Na vida vã da terra sepulcral

Só o amor é infinito e só ele é imortal.



Morreu a luz, pulverizando a fraga,

Morreu a poeira, alimentando a seara;

Morreu a seara, que gerou o trigo;

Morreu o trigo, que deu vida à carne;

Morreu a carne, que nutriu desejo;

Morreu desejo, que se fez pecado;

Morreu pecado, que floriu em dor;

Morreu a dor, para nascer o Amor!



E só o Amor na vida sepulcral

É infinito e é imortal!



( Guerra Junqueiro )

Consciência Plena


Consciência Plena




Levas-me, consciência plena, desejante deus,

por todo o mundo.

Neste mar terceiro,

quase oiço tua voz; tua voz do vento

ocupante total do movimento;

das cores, das luzes

eternas e marinhas.



Tua voz de fogo branco

na totalidade da água, do barco, do céu,

traçando as rotas com prazer,

gravando-me com fúlgido minha órbita segura

de corpo negro

com o diamante lúcido em seu dentro.



( Juan Ramón Jiménez )

27 setembro 2010

Os Monstros Do Seu Passado


Os Monstros Do Seu Passado

E então os monstros
do seu passado
retornaram com força total...
Vieram sedentos por causar
dor e desespero
em seu angustiado coração!

Tudo porque você
simplesmente abriu as portas
e os chamou de volta!
Sem ao menos
se dar conta disso,
achando que foi outra pessoa
quem fez isto!

( Roder )

A Minha Hora


A Minha Hora




Que horas são? O meu relógio está parado,

Há quanto tempo!...

Que pena o meu relógio estar parado

E eu não poder marcar esta hora extraordinária!

Hora em que o sonho ascende, lento, muito lento,

Hora som de violino a expirar... Hora vária,

Hora sombra alongada de convento...



Hora feita de nostalgia

Dos degredados...

Hora dos abandonados

E dos que o tédio abate sem cessar...

Hora dos que nunca tiveram alegria,

Hora dos que cismam noite e dia,

Hora dos que morrem sem amar...



Hora em que os doentes de corpo e alma,

Pedem ao Senhor para os sarar...

Hora de febre e de calma,

Hora em que morre o sol e nasce o luar...

Hora em que os pinheiros pela encosta acima,

São monges a rezar...



Hora irmã da caridade

Que dá remédio aos que o não têm...

Hora saudade...

Hora dos Pedro Sem...

Hora dos que choram por não ter vivido,

Hora dos que vivem a chorar alguém...



Hora dos que têm um sonho águia mas... ai!

Águia sem asas para voar...

Hora dos que não têm mãe nem pai

E dos que não têm um berço p'ra embalar...

Hora dos que passam por este mundo,

De olhos fechados, a sonhar...



Hora de sonhos... A minha hora

- 'Stertor's de sol, vagidos de luar -

Mas... ai! a lua lá vem agora...

- Senhora lua, minha senhora,

Mais um minuto para a minha hora,

Mais um minuto para sonhar...



( Saúl Dias )

Olhos


Olhos




Olhos:

brilhantes da chuva que caiu

quando Deus me mandou beber.



Olhos:

ouro, que a noite me contou nas mãos,

quando colhi urtigas

e fiz arrepender as sombras dos Provérbios.



Olhos:

noite, que sobre mim resplandeceu, quando escancarei o portão

e atravessado pelo gelo invernoso das minhas fontes

saltei pelos lugares da eternidade.



( Paul Celan )

Coração sem Imagens


Coração sem Imagens




Deito fora as imagens.

Sem ti, para que me servem

as imagens?



Preciso habituar-me

a substituir-te

pelo vento,

que está em qualquer parte

e cuja direcção

é igualmente passageira

e verídica.



Preciso habituar-me ao eco dos teus passos

numa casa deserta,

ao trémulo vigor de todos os teus gestos

invisíveis,

à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve

a não ser eu.



Serei feliz sem as imagens.

As imagens não dão

felicidade a ninguém.



Era mais difícil perder-te,

e, no entanto, perdi-te.



Era mais difícil inventar-te,

e eu te inventei.



Posso passar sem as imagens

assim como posso

passar sem ti.



E hei-de ser feliz ainda que

isso não seja ser feliz.



( Raúl de Carvalho )

26 setembro 2010

O Faminto


O Faminto



devora a vida

com sofreguidão

pois não sabe

o que lhe espera

no próximo minuto



devora livros

com desespero

para armazenar

todo o conhecimento

que pensa nunca irá usar



devora os sentimentos

alheio aos emoções alheias

por medo

de ser esquecido

e achar que nunca existiu



devora as pessoas,

tudo e a todos

no desejo

de que elas não se esqueçam

que foi ele foi devorado



o tempo todo

por todos

pela vida.



( Roder )

O País e o Corpo


O País e o Corpo




Com um coração de homem aqui lavra

de certeza outro sangue e outro amor

com um corpo de carne e outra maneira

de lançar a carne com o vigor

sobreposto dos dias em que

abrimos os braços e lá fora as armas

se desfecham sobre a paz



Conheço o mapa amor conheço a história

as salas sitiadas os teus ombros

conheço o corpo amor conheço o rio

onde se lava a carne que combate

as ciladas os lagos os jornais

as árvores o fogo a luz total

conheço amor conheço a tua carne

e o coração armado da cidade



( Gastão Cruz )

Moralidade


Moralidade




É nosso coração vorage imensa,

Em que Honras, Cargos, lúbrica Ventura

São dos Desejos vagos a mantença,

Que, gozados, os manda à sepultura,

Para abrir nova boca à turba densa

De prazeres de nova formosura

Quais das talhas das Bélides impias,

Se esvaecem as águas fugidias.



( Filinto Elísio )

Tu Mandaste-me Dizer


Tu Mandaste-me Dizer




Tu mandaste-me dizer

Que tornavas novamente

Quando viesse a tardinha;

E eu, para mais te prender,

- N'esse dia...



Pintei de negro os meus olhos

E de rôxo a minha boca.

As rosas eram aos mólhos

Para a noite rubra e louca!



Entornei sobre o meu corpo,

- Que fôra delgado e bello!

O perfume mais extranho e mais subtil;

E um brocado rôxo e verde

Envolveu a minha carne

Macerada e varonil.

Os meus hombros florentinos,

Cobértos de pedraria,

Eram chagas luminosas

Alumiando o meu corpo

Todo em fébre e nostalgia.

Nas minhas mãos de cambraia,

As esmeraldas scintillavam;

E as pérolas nos meus braços,

Murmuravam...

Desmanchado, o meu cabello,

Em ondas largas, cahia,

Na minha fronte

Ligeiramente sombría.



Estava pallido e dir-se-hia

Que a pallidez aumentava

A minha grande belleza!



Na minha boca ondulava

Um sorriso de tristeza.



A noite vinha tombando.



E, como tardasses,

Fiquei-me, sentádo, olhando

O meu vulto reflectido

No espelho de crystal;



E afinal,

Nem frescura, nem belleza,

No meu rôsto descobri!



- Ó morte, não me procures!

E tu, meu amôr, não venhas!...

- Eu já morri.



( António Botto )